quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A dor do Educador - por Johan Konings


A DOR DO EDUCADOR
A lógica da educação no Brasil parece repetir "Casa Grande e Senzala"

Na Sexta-Feira Santa pensei na dor do educador. Dor do educador, que vê crianças que “tinham tudo para dar certo” chegarem ao quinto ou sexto ano escolar sem saber ler nem escrever. Dor que ele sente não por causa do contracheque, como a imprensa às vezes sugere, mas por causa do fracasso da educação que dá nome à sua profissão – não por ter fracassado na profissão, mas porque a profissão em que está fracassou. Em alguns, essa dor tem caráter principalmente voltado para si, frustração pessoal. Outros sentem uma dor mais penetrante, a dor de quem ama e que sofre da dor do outro: sentem a dor por causa da infância perdida daquela criança, a dor dos pais que vêem seu filho ou filha chegarem ao fim da escolaridade sem ter recebido a formação mínima de que precisam para enfrentar o mundo. 

Pode parecer obsessão minha, já que, por profissão, deveria ocupar-me com o estudo científico da Bíblia em vez das dores dos educadores... Mas tenho uma justificativa: o que se costuma traduzir-se como “lei” (de Moisés), significa na realidade ensino, educação. Diz o
 Livro da Sabedoria (2,12) que os aproveitadores têm ódio do justo porque “repreende em nós os pecados contra a lei e nos difama por pecarmos contra nossa educação” (em grego, ‘paideia’). A ‘torah’ da tradição judaica (e cristã) é, antes de mais nada, educação.

Um engenheiro químico que colabora como voluntário em cursinhos populares pré-enem me veio contar, indignado, que os alunos no fim do ensino médio não sabem fazer as operações de cálculo fundamentais, necessárias para as fórmulas químicas. Pelo que parece, esse engenheiro não entende a lógica do nosso ensino...

Essa lógica é a seguinte: os filhos dos abastados recebem ensino básico e médio relativamente aprimorado em escolas particulares (preferencialmente de religiosos/as), sendo bem preparados para entrar na universidade pública, estudar de graça e ainda receber bolsas de pós-graduação ou aperfeiçoamento no exterior (onde mais tarde podem operar nas multinacionais brasileiras ou outras, ou criar relações interessantes para sua carreira aqui). Os de origem humilde perdem os anos de infância e adolescência, que são os de maior receptividade para a aprendizagem, em escolas públicas sem qualidade, sendo que uns poucos entram na universidade pública “por cota” e alguns outros trabalham de dia e estudam de noite para obter algum diploma superior numa faculdade particular (às vezes de qualidade questionável). Pior é que, no fim, o empregador não dá bola para tal diploma...

O ensino superior, fomentado pela União, forma especialistas em nível internacional. Isso é bom, sobretudo para a produção. Não vamos calcular quantos são, em proporção à população de quase duzentos milhões. Mas o que nos preocupa é o tempo, as “chances” e, sobretudo, a formação humana perdida no caso dos que só conhecem ensino básico e médio públicos, entregues às administrações municipais e estaduais. Se pelo menos existisse uma “responsabilidade educacional” semelhante à “responsabilidade fiscal” de que falei no meu artigo anterior!

A lógica de tudo isso parece ser a da casa grande e da senzala. Os da casa grande conseguem acompanhar o nível do mítico “primeiro mundo” (na realidade, muitos da classe A no Brasil gastam bem mais que seus equiparados na Europa). E ao mesmo tempo, apesar do (conjuntural) crescimento econômico das classes inferiores, continua aí toda uma senzala para os serviços de manutenção básica...

Enquanto perdurar essa estrutura, talvez seja melhor que os jovens populares não aprendam muito, porque ficariam ainda mais frustrados ao constatarem que o diploma não lhes dá muitas chances: é o que dizem não poucos educadores, os que preferem não sentir a dor de que falei. Os que falam assim não se movimentam, dizem-se cansados de dar murro em ponto de faca, não aderem à solidariedade de sua classe para provocar alguma transformação. Deixam tudo como está para ver como fica... e é isso aí que estamos vendo!

Informação de última hora: leio no jornal O Tempo (domingo 08/04/2012, p. 22, “Tendência”) que estão surgindo (no Rio, em São Paulo, em Minas...) escolas particulares de escala menor, geralmente administradas por organizações confessionais, cobrando mensalidades entre 200 a 500 reais, portanto, bem inferiores às das tradicionais escolas particulares. Acolhem filhos de famílias de baixa renda – possivelmente ligadas à sua denominação religiosa –, entre os quais as crianças que desistem da escola pública por sentirem que lá estão totalmente abandonadas... Não sei se é a melhor solução, mas pelo menos mostra o que está faltando!


Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara.